Mulher relata a experiência de perder suas meninas em um trágico acidente e a vida com o luto. O luto não acontece da mesma forma para todos, mas pode ser ressignificado.
Há cinco anos, Deisy Moura recebeu a ligação que mudaria os dias que viriam. Suas duas filhas, com 7 e 13 anos foram vítimas de um acidente de trânsito que tirou suas vidas imediatamente. Começou ali o luto e o maior sofrimento que poderia imaginar.
Essa experiência a levou a ser conselheira voluntária para os enlutados do Ministério Adventista das Possibilidades (MAP), ajudando outros a ressignificar seus sentimentos em relação a morte e todos os desdobramentos desse acontecimento. Ela compartilha nesta entrevista como tem sido o processo de recomeçar a vida depois da tragédia.
O que aconteceu para que você assumisse a função de conselheira para enlutados?
Em janeiro de 2019 aconteceu uma tragédia que levou minhas filhas à morte. Isso me desolou, isso tirou tudo de mim, eu realmente não sabia como eu ia continuar. Do fundo do meu coração, eu não sabia se eu duraria mais seis meses. Tinha medo de voltar a ter crises depressivas, eu não sabia o que Deus ia fazer da minha vida. Era o único questionamento que eu tinha coragem de fazer era: o que Deus vai fazer da minha vida? Eu não tinha coragem de perguntar por que Ele tinha feito aquilo, mas o que Ele ia conseguir fazer do resto de mim a partir daquele dia. E as coisas foram acontecendo e eu só queria encontrar um motivo para continuar, me agarrando a cada milímetro de força que eu encontrava. Todas as manhãs eu pedia a Ele um parzinho de muletas para eu conseguir levantar da minha cama. A cada manhã era uma gotinha de força que vinha, eu passava o dia, mas a noite estava prostrada de novo.
Foi o pastor Maicon e sua esposa, Juliana (conselheira do MAP para pessoas com deficiência visual), que enxergaram em mim o potencial. Eu gosto muito do trabalho na área social, então eles passaram a delegar a mim esse trabalho na região. Em meio a isso, conheci o pastor Alacy Barbosa, diretor do MAP na América do Sul. Em 2020 fizemos uma reunião e ele me fez o convite para essa função. Mais uma vez, me enxergavam com uma lupa que eu não entendia. Mas naquele janeiro de 2019 eu falei pra Deus que o que Ele quisesse, eu faria. Algum propósito tinha que existir em tudo aquilo. Apesar de toda aquela tragédia, Ele tinha ainda propósitos em minha vida. E eu gostaria de viver esses propósitos. Desde então, eu estou nessa função que eu amo que é falar da minha vida, da minha experiência, e não só de enlutados.
Geralmente, o luto vem em fases. Como foram essas etapas para você?
Olha, eu diria que eu não vivi nenhuma das fases do luto. Eu não tive a negação, não passei pela raiva, pela revolta. Mas você me pergunta: então você não sentiu nada, não teve nenhuma experiência ruim? Claro, eu tenho sempre. Até hoje eu tenho e terei até que Jesus volte. Talvez não que eu saiba definir com a nomenclatura que a Psicologia dá, mas eu tenho as minhas fases de luto.
Naquele primeiro momento, o que eu sentia era o vazio, a falta da fala, dos sons das minhas filhas em casa. Então, eu não queria ficar dentro de casa, eu buscava o barulho de crianças. Eu ligava para a casa da minha irmã depois do horário da escola porque era o momento que eu mais sentia falta: chegar em casa e ouvir como tinha sido o dia das minhas filhas. Então eu fazia chamadas de vídeo para ouvir a fala dos meus sobrinhos, para que aquilo enchesse os meus ouvidos. Mas eles não sabiam que esse era o motivo.
Depois disso veio o momento de me desfazer das coisas. Eu me dei tempo para isso. Já faz quatro anos e até hoje eu me desfaço das coisas. Tem pessoas que deixam o quarto e as coisas como estão. Eu não deixei. Eu desmontei tudo, mas tem coisas que eu ainda guardo e sei que com o tempo eu vou conseguir deixar. De tempos em tempos eu abro aquelas malas e digo: é hora de me desapegar disso. O meu luto ainda está em processo e eu sei que esse processo vai durar.
Eu tive um outro filho, o Saulo, graças a Deus. Isso foi para mim um presente de Deus. Eu e meu esposo oramos e dissemos a Deus que, se fossemos pais novamente, seria uma bênção. Mas se não, nós aceitaríamos. Meu filho completou um ano recentemente. Mas a gestação e tudo isso me trouxe momentos, lembranças, medos de como seria, de como eu me comportaria. Me perguntava: e se for uma menina, será que eu vou comparar?
Em dezembro minha filha mais velha faria 18 anos. E eu fico imaginando como eu estaria ao lado de uma filha adulta agora. Eu fico projetando elas, olho os amigos delas e me pergunto como estariam, que altura teriam, quais seriam os gostos, que curso escolheria para a faculdade.
Então, falar que eu não vivi as fases do luto é real, pelo menos não na intensidade que muitas pessoas vivem, e eu agradeço muito a Deus por isso. Mas isso não significa que eu não vivi e ainda vivo momentos de luto com muita intensidade. Eu sei como são várias fases do luto por ouvir, aconselhar, acolher, mas não por ter vivido.
Existe a dor do momento da tragédia e existe a dor do dia a dia, da falta, coisas que não se pensa na hora. Como você entende esses dois momentos?
Objetivamente: a dor do momento, quando recebi a notícia, é uma dor de morte. Aquela dor, eu achei que ia me matar. Eu falava para o meu marido: eu não vou aguentar, eu vou morrer.
As pessoas costumam dizer que a dor passa e vai ficar a saudade e as lembranças. Eu não vou falar que isso é mentira, mas eu ainda não vivi isso. Essas lembranças, só saudade boa. Eu nunca tive saudade boa. A dor que eu sinto agora é a do sentimento de “Senhor, está demorando muito. Volta logo!” Com base no que eu acredito, está demorando muito para eu reencontrar as minhas filhas. Me preparo todos os dias para reuni-las com o irmão, com a família.
A tragédia das minhas filhas não foi a minha primeira tragédia. Aos 11 anos, perdi meus pais. Meu pai assassinou a minha mãe e se suicidou. Talvez em uma proporção diferente, não maior ou menor, mas a dor de uma criança abandonada no mundo, que não sabia onde ia dormir, comer, foi a mesma dor que senti com a morte das minhas filhas.
Existe o “superar”? Ou é só uma forma de as pessoas tentarem te consolar?
Eu não definiria como como superação. Eu acho que a palavra que melhor define isso é “ressignificar”. Foi o que eu aprendi de 2019 para cá. Quando elas se foram, a primeira necessidade que eu tive foi de me conhecer a partir daquele momento. Eu precisava conhecer essa mulher. Depois de tudo isso, desde a minha infância, eu precisava saber quem sou eu. Eu precisava ressignificar muitas coisas na minha vida.
Eu recebo muitas mensagens, sobretudo quando faço palestras, dizendo que eu sou um exemplo de superação, mas eu discordo. Eu tenho ressignificado essa tragédia, especialmente a última, para esperar meu reencontro com minhas filhas. Eu ressignifico essa perda trabalhando em função dos outros, de pessoas que também sofrem, enquanto eu espero. Enquanto isso, eu trabalho para Quem eu estou esperando.
Você entende que a sua dor, hoje, está mais ligada a falta que sente das suas filhas ou do que vocês deveriam ter vivido, mas foram impedidas?
É um misto dos dois. Eu não tenho remorso de coisas que eu não fiz. Eu costumo dizer que eu amo a maternidade, é um papel que eu exerço com tudo de mim. Então eu não penso: eu podia ter feito mais. Mas eu penso: será que o que eu fiz, eu fiz direitinho? Fica essa interrogação aqui dentro. Será que eu fui uma mãe do jeito que elas mereciam? Mas ao mesmo tempo eu penso: se elas estivessem aqui agora, seria a hora de levar para conhecer a universidade, para onde estaríamos indo agora? O luto é isso. Acaba sendo um monte de questionamento que precisa ser respeitado, porque é um direito do enlutado.
Você acha que a experiência do luto pode ativar gatilhos de outros traumas?
Sim, e que eu precisei e ainda trato. Coisas que eu nunca imaginei em pautas de tratamentos psicológicos. E você descobre por que o luto abre as gavetinhas dessa caixinha tão perfeita e tão complexa.
Naquele primeiro momento, eu tomava antidepressivos. E eu comecei a passar mal com antidepressivos e eu não entendia. Fui com urgência para o meu médico. Ele me disse: “você não está em depressão, você está em luto.” Em outro momento eu usei medicamentos, mas não foram os antidepressivos. Muitas vezes a gente não respeita e ouve o que o nosso corpo está dizendo.
A dor do luto traz muita coisa e isso é muito importante para quem está do lado de um enlutado. Familiares, amigos, às vezes fazem a pessoa engolir o sentimento daquele momento. “Não chora, não fala, isso vai passar, essa dor vai passar, vai ficar só a saudade boa”, dizem. A gente tem também as lembranças boas, mas, infelizmente, para quem perde é muito difícil falar que vai ser só isso. E aí você vai tolindo a pessoa e ela já não tem forças para procurar ajuda profissional. E você acaba tirando dela a coragem de pedir a única coisa que consegue naquele momento, que é um ombro amigo. E aí ela se fecha nela mesma e vai morrendo aos poucos.
Você fala muito sobre a terapia e a fé. Você acha que estaria vivendo hoje sem essas duas coisas?
De forma nenhuma. Essas são as minhas duas muletas todas as manhãs. Ouso dizer mais. A minha fé é a corda lançada todos os dias no fundo do poço. Jesus lança a corda todos os dias e me resgata e me traz. Porque é diário. Um dia após o outro. As pessoas me perguntam: como você consegue? E eu falo: eu não consigo nada. Nem eu acredito, porque eu não consigo. Então, honestamente, só a misericórdia de Deus.
Às vezes você está muito bem, mas, às vezes, em datas como o aniversário das meninas, eu tento tirar o dia de folga porque é uma data que eu gosto de viajar nas fotos, gosto de imaginar, e aí eu choro, choro. E eu gosto de chorar sozinha. E quando eu não posso, visto minha armadura para sair e tiro ao chegar em casa. Choro uma madrugada inteira e, no dia seguinte, visto de novo a minha armadura e vou trabalhar. Porque é a minha dor. Eu não condeno quem diz que o dia das saudades e lembranças boas vão chegar, mas eu não acredito que um dia eu vá sentir isso. Eu acredito no dia em que vou abraçar minhas filhas de novo e dizer: acabou. Acabou para sempre essa distância.